quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A TARDE



Livre
a linha quase reta do horizonte
em curvas
vai cortando e definindo
uma velha e surrada colcha de retalhos de diversos tons
ora verde, carregado e profundo
passando por cinza até a nulidade marrom

Céu baixo.
Opressivo azul infinito em cúpula virada
Molde impreciso e volátil do mosaico vivo
Céu pressago que explode em azul locaz
comprimindo tudo em um afago suave

No centro deste círculo total, nesta terra
os olhos podem até perder a órbita
à boca da cratera, em um giro
receber o mundo nos braços
sentindo-o mais próximo entre os dedos

(Paulo Ferreira – Bahia - 02/02/2000)

DANE-SE!!!



Dane-se!
Que nada tenha
Que leve tudo mesmo
Haverá sempre outra maneira
E outra e depois outra
Não esta, é certo
Mas outra sim
Dane-se!

(Paulo Ferreira - Bahia, 20/02/2000)

HINO AO SONO

Ó sono! Ó noivo pálido
Das noites perfumosas,
Que um chão de nebulosas
Trilhas pela amplidão!
Em vez de verdes pâmpanos,
Na branca fronte enrolas
As lânguidas papoulas,
Que agita a viração.


Nas horas solitárias,
Em que vagueia a lua,
E lava a planta nua
Na onda azul do mar,
Com um dedo sobre os lábios
No voo silencioso,
Vejo-te cauteloso
No espaço viajar!


Deus do infeliz, do mísero!
Consolação do aflito!
Descanso do precito,
Que sonha a vida em ti!
Quando a cidade tétrica
De angústias e dor não geme…
É tua mão que espreme
A dormideira ali.


Em tua branca túnica
Envolves meio mundo…
É teu seio fecundo
De sonhos e visões,
Dos templos aos prostíbulos,
Desde o tugúrio ao Paço.
Tu lanças lá do espaço
Punhados de ilusões!...


Da vide o sumo rúbido,
Do hatchiz a essência,
O ópio, que a indolência
Derrama em nosso ser,
Não valem, génio mágico,
Teu seio, onde repousa
A placidez da lousa

E o gozo de viver…

Ó sono! Unge-me as pálpebras…
Entorna o esquecimento
Na luz do pensamento,
Que abrasa o crânio meu.
Como o pastor da Arcádia,
Que uma ave errante aninha…
Minh’alma é uma andorinha…
Abre-lhe o seio teu.

Tu, que fechaste as pétalas
Do lírio, que pendia,
Chorando a luz do dia
E os raios do arrebol,
Também fecha-me as pálpebras…
Sem Ela o que é a vida?
Eu sou a flor pendida
Que espera a luz do sol.

O leite das eufórbias
P’ra mim não é veneno…
Ouve-me, ó Deus sereno!

Ó Deus consolador!
Com teu divino bálsamo
Cala-me a ansiedade!
Mata-me esta saudade,
Apaga-me esta dor.

Mas quando, ao brilho rútilo
Do dia deslumbrante,
Vires a minha amante
Que volve para mim,

Então ergue-me súbito…
É minha aurora linda…
Meu anjo… mais ainda…
É minha amante enfim!

Ó sono! Ó Deus noctívago!
Doce influência amiga!
Génio que a Grécia antiga
Chamava de Morfeu,
Ouve!... E se minhas súplicas
Em breve realizares…

Voto nos teus altares
Minha lira de Orfeu!





Castro Alves nasceu na Fazenda das Cabeceiras, perto da cidade de Curralinho (hoje cidade de Castro Alves), no dia 14 de Março de 1847. Quando tinha sete anos, a família mudou-se para Salvador. No início de 1862, Castro Alves partiu para o Recife, onde fez os preparatórios para a Faculdade de Direito. Conheceu então a actriz portuguesa Eugênia Câmara, de quem se tornou amante aos dezanove anos. Na Faculdade, parecia mais interessado em agitar ideias abolicionistas e republicanas e produzir versos do que estudar leis. Óptimo declamador dos seus próprios poemas, recitou O navio negreiro e Vozes d'África sob a ovação dos estudantes. Sua vida afectiva entrou em crise pelas constantes traições à orgulhosa Eugênia, acabando esta por abandoná-lo definitivamente. Morreu em Fevereiro de 1871, antes de completar vinte e quatro anos, após a publicação do seu único livro em vida: Espumas Flutuantes (1870).